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[Crítica] Meu Pai (The Father)
desconexao leitura abril 05, 2021 0
“Por que reagimos em face dessas ‘irrealidades’ como
se elas fossem a realidade intensificada?”
“A tensão e a contradição dialética são inerentes à
arte.”
Ernst Fischer
Um drama outonal. Anthony Hopkins mais uma vez - senhor
do pleno domínio de sua arte - imprime uma espetacular interpretação a uma
personagem que vive uma realidade extremada. Dessa vez trata-se de Anthony
(André na versão francesa para o teatro), um homem idoso que atravessa um
processo de demência que faz com que sua memória teça torneios inesperados. Ele
tem uma lembrança de uma cena, esquece-a e volta a lembrá-la agora agregada a
uma nova situação ou pessoa. Tudo à sua volta torna-se impermanente, intangível
ou inconsistente. Ele é muito inteligente e percebe as incongruências de sua
vida, ou do que pensa ser a sua vida, com um grande sofrimento e um espanto
inquietante.
Um pai intangível. Anne, a filha de Anthony, cuida
dele até o momento em que ela tem que seguir seu próprio destino, suas próprias
escolhas. A interação dos dois gera muitos momentos de lágrimas e emoções
diversas. Ela por vezes é compreensiva, mas outras vezes não - assim como todas
as outras pessoas. É difícil ter que lidar com uma mente desconcertante que se
apresenta em franco processo de desagregação. Anne arranja enfermeiras, que são
enxotadas por seu velho pai com embates litigantes baseados em fortes
estratégias discursivas. Ela ainda tem
que suportar servir de alvo de um libelo imaginário com pesados golpes de algum
tipo de construção persecutória.
Tudo junto e misturado. A transitoriedade da vida não implica necessariamente na perda de sua beleza. As desditas
cognitivas numa idade avançada não desqualificam o ser humano como ser humano,
embora seja verdade que muitas pessoas não percebam esse fato dessa maneira. O
medo diante da não racionalidade aparente dessas criaturas pode gerar
preconceitos e temores. É uma figura frágil a que vemos na tela: um pai fraco,
impotente, debilitado. Ao mesmo tempo, ele é ardiloso, impositivo, pleno de
construções mentais astutas. Talvez seja uma imagem impotente mostrada com
muita potência. Ardil da arte cinematográfica, ou quem sabe de um romance
familiar revisitado. Nomear, na versão inglesa, a personagem como Anthony, mesmo
nome do ator que a interpreta, cria um vínculo entre a personagem e o artista
de tal maneira que só tende a, sutilmente, engrandecer aquela imagem daquele
pai em desconstrução, produzindo um aparente paradoxo: pai frágil e pai potente
ao mesmo tempo. A possibilidade de fruição daquela figura de pai mostrada de
tal maneira eleva a estima dedicada a ele, aumenta o valor da homenagem.
Enquanto o sol ainda
brilha lá fora. A
voz narrativa do filme é dada não, como é freqüente, pela filha ou pelas outras
personagens que aparecem e desaparecem, mas por esse “Pére” perdido em seus
exageros disjuntos dos fatos ali mostrados. Isso aproxima o espectador da
personagem, cria um halo que envolve a ambos, torna a vivência das desaventuras
desse ser mais sentidas e mergulhadas num sentimento de compartilhamento um
tanto esgarçado, mas consistente o suficiente para que se possa experimentar as
vicissitudes da decomposição mental com razoável simpatia.
“Eu estou perdendo
todas as minhas folhas”. A montagem tem um papel importante nas idas e
vindas no tempo, na superposição das figuras que contracenam com Anthony e nos
estados de espírito voluptuosos ou quase anárquicos. O espectador acaba não
sabendo o que de fato está acontecendo e o que é imaginação ou descontrole mnemônico.
A direção de arte faz a magia de transformar o “mesmo espaço” em diferentes
lugares, conforme Anthony vai sendo transportado para onde possa ser bem
acompanhado por Anne. Os enquadramentos focam com rigor os vários planos que
exibem a face vitoriosa do protagonista ou quando ela se mostra abismada por
perceber que algo não vai bem, embora ele não saiba situar o quê. Em solo
movediço, tantas metamorfoses sutis de uma presença avassaladora. Dialética da
demência e da racionalidade. Empatia e dissonância entre pai e filha. Que ser
humano permanece ali?
Monsieur Zeller. O diretor é um autor de romances e peças
de teatro, entre as quais está “Le Père”, que além de ganhar o Prêmio Molière
em 2014, foi laureada e teve indicações em Paris, Londres e Nova York. A peça foi
traduzida para o inglês por Christopher Hamptom, que também escreveu o roteiro
do filme “The Father” em conjunto com o autor. Florian Zeller, que é para o The
Times “o dramaturgo mais emocionante do nosso tempo”, foi agraciado com o Prix
Interallié em 2004, pela obra “La Fascination Du Pire”. Não por nada seu filme
concorre a seis categorias do Oscar: 1. Melhor filme; 2. Melhor ator; 3. Melhor
atriz coadjuvante; 4. Melhor montagem; 5. Melhor design de produção; 6. Melhor
roteiro adaptado.
“Meu
Pai” (The Father) – 2020 – 1h 37min
Direção:
Florian Zeller
Roteiro: Christopher Hampton e Florian Zeller (baseado
na peça “The Father”, de Florian Zeller)
Fotografia:
Bem Smithhard, BSC
Música:
Ludovico Einaudi
Editor: Yorgos
Lamprinos
Com: Anthony
Hopkins – Olívia Colman – Mark Gatiss – Imogen Poots – Rufus Sewell – Olivia
WilliamOs
Observação: O filme estreia
no dia 9 de abril, nas plataformas digitais, Now, Itunes (Apple TV) e Google
Play disponível para compra, e a partir do dia 28 de abril, ficará também
disponível também para aluguel, nessas plataformas já citadas e também na Sky
Play e na Vivo Play. A estreia de MEU PAI em salas de cinema não está
descartada, e ocorrerão conforme as mesmas abrirem em cada cidade.
Marco Guayba
Ator, diretor,
preparador de elenco e Mestre em Letras
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