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[Crítica] ”Druk – Mais uma Rodada”
desconexao leitura março 25, 2021 0
“A superioridade do homem sobre o animal está pois em
ser suscetível de desesperar (...) há uma infinita vantagem em poder
desesperar, e, contudo, o desespero não só é a pior das misérias, como nossa
perdição.”
Soren Kierkegaard
Quatro amigos, todos eles professores do ensino médio,
resolvem, durante o aniversário de um deles, fazer um experimento científico
com as teorias pra lá de escalafobéticas do filósofo e psiquiatra norueguês
Finn Skarderud. Este etílico pensador
considerava que os seres humanos têm uma deficiência de 0,05% na taxa de álcool
no sangue. Ele diz, então, que é sensato beber para restabelecer o equilíbrio e
levar os homens às suas realizações.
Os quatro parceiros lançam-se entusiasticamente à sua
aventura científica. Não se esquecem de registrar os passos dados e os efeitos produzidos, afinal, trata-se de somar conhecimentos.
De início, tudo vai muito bem: suas aulas, antes vazias e sem motivação,
tornam-se vibrantes e participativas. Os alunos passam a se envolver mais
positivamente com suas matérias.
O aniversário é de Nicolaj, mas o centro de tudo é Martin, o
professor de História (vivido pelo fantástico Mads Mikkelsen). Martin é um caso
sério. Trocando em miúdos, podemos dizer que ele é um professor cansado de
lecionar, um professor cansado de ser marido, um professor cansado da vidinha
que leva. Um derrotado não se sabe porquê. Vive ausente de suas aulas e de sua
família. Seu vazio existencial está estampado em sua face como se fora uma
máscara trágica. Ele é o personagem central dessa trama sobre os impasses do indivíduo
na moderna sociedade industrial. Ou, filosoficamente falando, sobre a condição
humana desde sempre determinada pelo desespero.
Todos os quatro anseiam (conscientemente ou não) em sair
dessa vida mesquinha, plena de um vazio de satisfações, tão presente no estágio
atual da sociedade capitalista, com seu poderoso desenvolvimento tecnológico
antes inimaginável. Uma sociedade que não aposta no desenvolvimento das
potências interiores e no crescimento do indivíduo, e sim na sua equiparação a
todos os outros seres humanos, cidadãos do infortúnio, mas consumidores ideais.
O curioso nessa história é que há um cão chamado Laban. Deve
estar lá, provavelmente, para fazer um contraponto irônico ao “cientificismo”
dos alegres cavaleiros da champanhe, da cerveja, da vodka e
de todos os demais destilados. Laban é o pet de Tommy, o professor de ginástica
e esportes, que vê despertar nele mesmo um autêntico líder de atletas.
Pois bem, Rudolf Laban era um artista do palco especialista
na preparação corporal de atores e bailarinos, que postulava um retorno aos movimentos
naturais. Considerava
que o movimento devia ser
utilizado de maneira espontânea e sempre como resultado de um impulso
consciente, cultivado a partir de um treinamento rigoroso, para atingir suas
metas de plasticidade e expressão. Certa vez, teria afirmado que "a dança
pode ser considerada como a poesia das ações corporais no espaço.". Martin
quando jovem fora um criativo dançarino de balé jazz. E há mesmo uma brilhante
cena em que o personagem leva seu corpo pelo espaço, vibrando de alegria e dor,
como se já não tivesse densidade nenhuma.
No início do filme aparece na tela uma citação que fala da
juventude e do amor. Ela é assinada por Soren Kierkegaard, filósofo e teólogo
dinamarquês, que viveu no século XIX, considerado por muitos o “pai do
existencialismo”. Mas esse papo sobre juventude e amor é até certo ponto uma
pista falsa, um elemento enganoso, pois o aspecto do pensamento desse autor que
deve ter servido de suporte para a trama é a sua reflexão sobre a angústia e a
liberdade.
Não por acaso, um aluno inseguro, com medo de não se formar,
sorteia o ponto O Conceito de Angústia em Kierkegaard. Ele tenta fugir, mas o
professor o impede e lhe fornece uma motivação especial com uma boa dose de
álcool na forma de vodka ou outra bebida qualquer. Lembremos que os quatro
amigos empenham-se em suas inusitadas experiências porque também percebem que
suas vidas estavam como que massacradas, envolvidas numa inércia sem nome.
Pois bem, Kierkegaard destaca a importância da escolha e do
comprometimento pessoal. Porém, a angústia é algo que simplesmente aparece como
a atmosfera da possibilidade, da abertura para poder ser ou fazer. Para o ser
humano não é possível querer definir o medo por antecipação. Ele deve aprender
a angustiar-se exatamente com aquilo que
o angustia no momento mesmo da possibilidade, ou seja, no momento em que sua
ação revela a própria angústia. A liberdade é essencial aí, pois ela é que
turbina as possibilidades na vida de cada um.
O diretor Thomas Vinterberg recebeu o Prêmio do Juri, no
Festival de Cannes, por seu badalado filme “Festa de Família”, de 1998. Outra
obra sua também teve grande repercussão, “A Caça”, que foi indicada ao Oscar em
2014. Seus filmes tendem a ser ácidos e sombrios, embora pontuados por uma
certa dose de humor, com críticas ferozes à hipocrisia e aos preconceitos
presentes na sociedade humana. Ele é um dos participantes do movimento
Dogma-95, concebido por Lars Von Trier e o próprio Vinterberg. Inspirado em
Truffaut e na Nouvelle Vague francesa, esse movimento pretendia resgatar o
cinema como arte, abrindo mão de recursos caros e de efeitos especiais,
centrando seus filmes na história e no trabalho dos atores, que, aliás, é muito
bem realizado neste filme de agora.
Até certo ponto “Druk”
parecia mais com um filme comercial, americano ou europeu, com uma história
fácil de ser compreendida, com suas bebedeiras homéricas e seus dramas
mitigados ao fim de tudo. Mas, na verdade, seu desfecho trágico realizado com
grande beleza plástica e poética relança o espectador ao que supomos ser seu
tema filosófico central, provocando assim mais uma vez uma reflexão sobre a
existência como tal.
Druk - Mais uma Rodada”
- Dinamarca/Suécia/Holanda – 2020 – 117 min
Direção: Thomas Vinterberg
Roteiro: Thomas Vinterberg e Tobias Lindholm
Produção: Sisse Graum Jergensen e Kasper
Dissing
Direção de Fotografia: Sturla Brandth Grovlen
Montagem: Janus Billeskov Jansen
Com: Mads
Mikkelsen – Thomas Bo Larsen – Magnus Millang – Lars Ranthe – Maria Bonnevie –
Helene Reingaard Neumann – Susse Wold – Magnus Sjorup – Silas Cornelius Van
Marco Guayba
Ator, diretor, preparador de elenco e Mestre em Letras
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