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[Crítica] “Pieces of a Woman”
desconexao leitura janeiro 28, 2021 0
“A semente da criação do autor
deve ser plantada na alma do
ator, passar pela
fase da decomposição, lançar suas
raízes: delas surgirá uma nova
criação.”
Constantin
Stanislavski
“O problema central do ator, ou seja, como é possível para
ele "sentir de verdade" e, ao mesmo tempo, ter completo domínio do que
precisa fazer no palco.”
Lee Strasberg
O filme “Pieces of a
Woman” está organizado em torno de três eixos. Primeiro: o drama terrível
das três personagens centrais, um parto feito em casa seguido da morte do bebê.
Segundo: a força do trabalho dos atores. Terceiro: o envolvimento pessoal do
diretor e da roteirista com o enredo.
O roteiro é a ficcionalização de uma vivência extremamente
dolorosa da roteirista húngara, Kata Wéber, e de seu marido, o diretor do
filme, Kornél Mandruczó. Foi um empreendimento comum do casal, que passou por
uma experiência semelhante, mas não do mesmo tom, e precisava falar sobre esse
tema, pois ele permanecia cutucando suas dores e pressionando significados
ainda não explicitados.
A atriz Vanessa Kirby sustenta uma performance impecável,
seja na primeira meia hora do filme, quando acontece um parto sofrido mostrado
por meio de um longo plano-sequência, seja no restante da obra, em que a personagem Martha vive uma série de
sentimentos incoerentes e inexplicados, ao mesmo tempo que não quer encarar
aquela aflitiva situação. Destaque também para a veterana Ellen Burstyn, que interpreta,
com sangue nos olhos, a avó que pressiona sua filha a agir e exigir reparação
pela mágoa que lhe foi infligida. E, por fim, o belo trabalho de Molly Parker,
que incorpora reações minimalistas, mas intensas à uma parteira que não sabe
como se defender de um crime que ela não cometeu.
Sem esse trabalho notadamente técnico - que no caso quer
dizer nitidamente emocional - o filme perderia grande parte de seu impacto e de
seu encanto. Teríamos cenas vazias, perdidas numa imobilidade de sentimentos.
Mas a mão de ouro do diretor soube manter as coisas na tensão precisa que o
drama necessitava para ser escrito na tela. É verdade que em certos momentos,
quase resvala para o melodramático, o que seria uma pena. Sua própria
experiência com o assunto permitiu que ele soubesse bem o que deveria ou não
fazer.
O plot de base do filme, a morte da criança após o parto,
remete a questões muito graves para os seres humanos, particularmente para
aqueles que sofreram perdas tão dolorosas. O pesquisador Bruno Bettelheim ao
falar sobra a “angústia de separação” diz que “não há maior ameaça na vida do
que a de que seremos abandonados, deixados completamente sós.” Esse abandono
pode vir, por exemplo, da parte dos pais. Mas a verdade é que a perda de um
filho pode ser sentida de forma até mais intensa e desesperadora: foram nove
meses de espera e expectativas, acumularam-se vários desejos sobre como seria a
vida com a presença desse novo ser, e foi cultivado dia após dia um amor tão
incomensurável quanto inexplicável.
Perdas tão significativas demandam aquilo que é conhecido
como um “trabalho do luto” bastante elaborado. Isso demanda tempo, pois
enquanto se procede a operação de desligar a libido das promessas e lembranças
vinculadas àquele ser visto como tão encantador, o sujeito precisa ir se
acomodando a uma nova percepção da vida e a uma organização de seu espaço
subjetivo que incorpore (ou simbolize), de alguma maneira, tal experiência
trágica.
A personagem Martha atravessa esse Rubicão da (quase)
maternidade e consegue construir respostas éticas para o mal que a atingiu.
Vanessa Kirby espelha esse processo de seu papel dramático com tanto rigor
artístico, que já há quem a aponte como séria candidata ao próximo Oscar.
O diretor Kornél Mundruczó soube mostrar na tela um parto sem
nenhum glamour, mas com muita objetividade, dando suficiente espaço para
reações muito comuns nesse momento, e acentuando a descoordenação mental e
receios da mãe quando se trata de um parto complicado. Encenar esse momento deve
ter sido muito árduo para quem passou por algo semelhante. Mas também deve ter
sido extremamente libertador.
“Pieces of a Woman”
– 2020 – drama – 2h 8min
Diretor: Kornél Mundruczó
Roteiro: Kata Wéber
Música: Howard Shore
Fotografia: Benjamin Loeb
Produtor executivo:
Martin Scorsese
Com: Vanessa Kirby – Shia LaBeouf – Molly Parker – Sarah
Snook - Iliza Shlesinger - Benny Safdie – Jimmie Fails – Ellen Burstyn
Uma produção original Netflix
Marco Guayba
Ator, diretor,
preparador de elenco e Mestre em Letras
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